Relatos marginais do trabalho de campo em Manaus
– O bar do Armando
Chegamos em Manaus na sexta-feira.
Nossa primeira noite terminou em pizza e descanso. Na segunda noite, uma
conjunção de fatores: era sábado à noite, era o acúmulo de energia da noite
passada, era a euforia do começo da viagem, e era o aniversário de Flávia.
Após os trabalhos daquele dia, bem
cansativos, caminhamos rumo ao centro a procura de algum bar barato. Passamos
pelo teatro amazônico, perto de onde havíamos almoçado na sexta, e nos
deparamos com o bar do Armando. A aparência de boteco era extremamente
convidativa ao meu gosto, o preço era aceitável e podíamos sentar nas mesas da
calçada.
Lembro-me bem da energia
transbordante de nossa mesa, a euforia, os risos, o álcool, a fumaça sinuosa de
um cigarro de palha, a lua crescente. Era uma festa espontânea. Lembro dos
olhares de Ana, ao mesmo tempo fortes e suaves, dos risos de criança de Flávia,
mordendo de leve a parte de baixo da boca, das minhas gargalhadas longas,
intermináveis, por qualquer motivo pequeno. Dos brindes, milhares. Das poesias.
Dos votos, promessas de amor vazias, mentiras sinceras, não importa. A
realidade é fugidia e existiu ali por um pequeno momento. “Se a partir daqui tudo
der errado na viagem, ainda assim ela terá dado certo, só por causa da noite de
hoje”.
Começamos nosso pequeno sarau no
bar. Vi em cada poema despertar nas duas um sorriso gostoso e verdadeiro, e
talvez todo esse brilho tenha atraído nosso curioso visitante. Um senhor com já
seus sessenta e tantos anos, com uma longa barba branca, chinelos e regata,
portando um boneco de ventríloquo, sentou-se em nossa mesa. Utilizando o
boneco, pediu mais uma cerveja, mesmo sob protestos do garçom que já tentava fechar
o bar a algum tempo. Parecia ser bem conhecido por ali.
Foi então que nos recitou o poema
Sete Vidas, dele mesmo. Fantástico. Adoramos. Ele continuou a recitar poemas,
nos pediu para recitar alguns. Por alguns segundos nossa mesa havia sido
transportada para uma dimensão em paralelo, na qual o mundo não existia, não
tínhamos passado, nem peso. Apenas a poesia no ar parecia importar, ela não
estava nas palavras. E do modo efêmero como ele veio, foi. Levantou-se de
repente, correu e tomou um ônibus, deixando para trás três pessoas maravilhadas
e um boné suado, num projeto de Cinderelo tupiniquim às avessas. Escrevemos um
poema tentando captar de leve o episódio, colocamos dentro do boné, e pedimos
ao dono do bar que entregasse para o dono, insistindo muito na importância
disso.
No fim da noite, fizemos nosso
cerimonial de aniversário: shot ao amigo. As declarações de amor que se
seguiram em dedicação dos copos eram como juras falsas e sinceras, o belo da
vida, efêmero, permanente apenas em si mesmo e na intensidade. Essa derradeira
dose de cachaça, descendo quente, brindando forte, batendo o copo na mesa,
encerrou nossa conta. Partimos do bar bêbados, leves, sorrindo, prometendo ler
poesias a noite toda no hotel. Ao chegarmos nas camas, o álcool nos derrubou em
menos de dez minutos, e dormimos feito rochas.
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