quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Sunshine I

            Seu verdadeiro prazer era realmente o toque do sol. O sol, em seu brilho, era muito fascinante. “O toque do sol é divino” dizia. Pensava que não era a toa que o sol tenha sido considerado por tantas civilizações como um deus supremo. Alguns amigos ateus dele diziam que se deus existisse, ele com certeza era o sol.
            O sol o fazia sentir a vida como existente, como viva, e corria por seu corpo. Energia em sua mais pura definição. O corpo todo interage com ela, a assimila como parte integrante, é muito difícil definir a sensação no corpo de algo que, muitos pensariam, é uma centelha divina que te toca. E você sente, até da maneira mais vulgar, na pele, com suavidade e força ao mesmo tempo.
            As cores ficam mais vivas. Ele gostava de pensar que o toque do sol era que dava brilho às coisas, os contrastes, deixando tudo parecer obra de arte. Talvez transforme tudo em um sonho surreal. Mas o colorido do natural ficava realmente tão belo quanto um quadro de Da Vinci, tão psicodélico quanto a música, tão vibrante quanto o calor que o sol proporciona. 

            O nascer e pôr-do-sol eram para ele os fenômenos mais espetaculares do planeta, e mesmo assim são relativamente acessíveis, com um pouco de esforço se acha um bom lugar para assisti-los. Ver algo que ele sentia ser fonte de vida chegando à Terra e indo embora.

Dia 36

Ele caminhava. 

Era uma rua reta e comprida, que para ele parecia algo mais próximo de um túnel. Só via as cores cinzas ao redor se repetirem indefinidamente. Uma chuva leve caía, ocupava-lhe de sentir a água escorrer suave pelo rosto. No ritmo dos seus passos seus olhos alteravam as cenas do agora às cenas do passado; um passado nostálgico, de tempos felizes em que ele tinha plena consciência de estar vivendo seus momentos mais marcantes. Dizia-se consciente da própria felicidade e achava isso um dom, talvez uma dádiva. Não importa mais, é tudo sombra e pó, de um tempo cruel que não volta atrás.
            
Vivemos os dias de hoje.

            Estava triste, contudo, a tristeza era pouca. Mesmo assim, se ressentia por carregá-la sempre. Ela o acompanhava. Talvez até já parte dele fizesse.
            Andando, via passando tudo aquilo em que errou. Andava levemente curvado, com as mãos nos bolsos, estava um pouco frio.
            “Esqueça, não pensa mais”.
            Seu olhar estava turvo, como se a realidade estivesse ligeiramente curvada. Droga, ele não sabia nem a data. Não importava, seu relógio mais imediato era o compasso do coração, que agora parecia apertado.
            As vezes sua mente desligava, talvez por autodefesa, e ele punha-se em um estado em que apenas sentia. Contudo, mesmo ao apenas sentir, sentia uma ponta de algo que lhe faltava (ou sobrava, não sabia ao certo).
            Adiante, ele vê, às portas de um carro aberto, um reencontro. Abraços apertados, rostos felizes, sorrisos. Ele pode sentir reverberar nele tamanha energia. As vezes a felicidade dos outros é tanta que ele pode senti-la, ele se sente sensível por isso, mas não gosta muito disso.
            Ele se concentra nas suas passadas, não pode se dar ao luxo de imaginar-se em uma cena como aquela. Não poderia. “Esquece, não pensa”. Fecha os olhos, apertando-os de leve. Ele passa a mão no rosto, enxugando um pouco da chuva, e segue em branco o seu pensar.

            “Quem sabe se vive outra vez?”

            Tudo alegre, ia e vinha, como fachos de luz ao seu redor, via o mundo diferente e não ligava. Ele ainda sente, e grita ao vento que de fato amou. Em casa, exaurido, deita. Terá sonhos dos quais não se livra todas as noites; não os acha ruins, mas preferia as vezes dormir sem sonhos.
            Os dias passam. Ele sempre pensava que tudo passava, sumia, acabava. Mas a constância era realmente o desfaio maior. A paz era suficientemente forte, ele viveria. Teria forças para apenas dirigir um “que pena” ao passado e continuar.
            Em frente a sua janela, ele observava uma garota que praticava dança em um estúdio no prédio à frente. Era belo ver seus movimentos suaves de balé riscando o ar, produzindo uma música que ele de fato podia ouvir, mesmo que o som do estúdio não o alcançasse de fato. Ele gostava de imaginar que ela estava apaixonada e por isso dançava com aquela paixão. Na verdade, gostava apenas de pensar que ela era jovem e feliz, e que ele sentia.
            
“Esquece, não pensa mais”.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Gabriel - dor de estômago

Já era tarde. Gabriel estava sentado, arqueado sobre si mesmo. Os olhos vermelhos lhe pesavam, respirava fundo, mas pouco podia. Tinha a mão sobre o estômago, e com a outra se apoiava na mesa empoeirada. As dores estavam aumentando e ficava cada vez mais difícil ignorar. Foi até a cozinha e pegou uma banana, estava passada, mas ele comeu depressa. Ainda a mão sobre o estômago. Voltou ao quarto e sentou-se. Já não soava alto o som intempestivo da fase clássica dos Mutantes, que enchia a casa tanto quanto os fortes raios de sol que aqueciam a cama debaixo da janela. Estava no silêncio, em uma noite sem lua, num quarto sem ninguém.

           Estendeu a mão sobre a gaveta, procurando algo. Ainda arqueado, colocou sobre seu colo um bloquinho de papel de lembretes. Testou três canetas para achar uma que ainda escrevesse, as tintas estavam secas. Então escreveu: “Acorde mais cedo. Faça um sanduíche gostoso e NÃO beba café o dia todo! Abraços... ”, e colou em frente a tela do computador. Então riu. A frase de fato tinha ficado ambígua. 
Depois, pôs-se a escrever.

Solidão

Fechado no meu quarto fico sozinho.

Hoje passei o dia todo aqui. Abri as janelas, entrei em contato com o dia e com o vento. Ouvi música alta, curti meu ócio, e não entrei em contato prolongado com muitas pessoas, reservando mais tempo para ficar comigo.
Acredito que o motivo principal de algum dos meus momentos de solidão é justamente que às vezes eu mesmo me abandono. Deixo-me sozinho para me perder no meio dos outros, e atesto que é bem possível estar só em meio à multidão.

...
Hoje foi diferente. Fiquei de fato sem alguém por perto, mas ao mesmo tempo me senti mais comigo, pude me perceber melhor. É justamente na decomposição de algo que os elementos irredutíveis se mostram, elementos que em conjunto não eram tão bem identificados.
Em certos momentos do dia concluí que as pessoas de alma pobre são justamente aquelas que não se permitem conhecer-se. Concluí também que a solidão pode ser um mal se usada erroneamente, assim como tantas coisas na vida. Descobri que a mente se liberta do corpo melhor quando não está presa a presença de outros, mas que ela vai por caminhos próprios, não se leva a mente aonde se quer.

domingo, 7 de setembro de 2014

Pequeno quarto - ao som de Arnaldo Baptista

Era uma manhã fria de agosto, na solidão e aconchego do pequeno quarto, as paredes, o tempo e o espaço, se transmutam em uma mistura de distorção, cores, sentidos novos. É confuso, mas não entender faz parte das novas sensações.
Sentia-se como um desprendimento. A realidade, às vezes, age como um grilhão. É o peso. É irônico: sair desse jugo é tão leve e ao mesmo tempo tão intenso, tanto quanto o peso jamais será.
Essa leveza parecia estática, mas também movimento. Ou algo entre as duas coisas. É difícil perceber. O movimento às vezes é de tudo ao redor enquanto se está parado. Talvez um terceiro estado da relação de posição entre corpos para o qual não exista ainda uma palavra.
O som parecia luz, a luz parecia som. O ar estava mágico, os contornos de tudo ligeiramente borrados e luminosos. Não fazia a menor diferença olhos abertos ou fechados. Nada fazia diferença, tampouco semelhança de algo.

...

Um turbilhão.

Uma respiração te traria à realidade. Espere. Mais um pouco...

Cuidado. O labirinto de Minus pode as vezes ser traiçoeiro e nos confundir. Não perca a corda amarrada na saída. Ou a trilha de pão.

Mais um. Erga os braços e aproveite a descida. Sem medo, aproveite porque é emocionante, é como a primeira descida da montanha russa, mas para todas as direções.


Respiração funda. Saliva descendo a garganta. O tato de novo reaparece. Agora já reconhecível a posição do corpo, as paredes, o teto... Uma era inteira se passou. Mas agora os sentido percebem que não passou mais de um minuto ou dois, pois foi apenas o tempo exato de um solo de órgão de Arnaldo Baptista.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Shine on you crazy diamond

De repente percebeu que lhe restavam apenas lembranças de uma outra época.
Pensou em músicas, em pessoas, em milhares de memórias criadas por ele mesmo.
Viu-se em outras ruas. Sentiu texturas. Sorriu das travessuras.

As conversas. Longas, intermináveis, sobre tudo, qualquer coisa que nos deixe aqui, falando e se olhando, como se o mundo parasse.

A intensidade. Aquele explodir do peito, “como um tremor de terra”. Os gritos...
Uma garrafa vazia, cinzas no lençol, uma vitrola tocando Pink Floyd.
Tantos lugares, tanta coisa, tanto tudo.

De repente se percebeu ali sentado. Não pareciam ser a mesma pessoa, mas eram.

Torre

Eles estavam sós. Fazia frio e um nevoeiro já se ameaçava, mas a vista espetacular do lugar fazia ver a cidade inteira, e esqueciam por vezes do tremor da pele, sem saberem se tremia pela temperatura ou pela ligeira lascívia daquele momento, que era fugaz e ao mesmo tempo longo, como a madrugada que adentravam.
            A noite de fato havia sido longa. Durante a festa, a banda tocou a todo vapor uma combinação de Mutantes com Tim Maia Racional, tornando a trilha sonora algo inacreditável. Eles, porém, ouviram à relativa distância, pois fugiram da multidão para observar estrelas, e haviam se perdido em uma sacada fria de onde apreciaram a vista, onde aproximaram o rosto, murmurando mentiras sinceras.
            O som de fundo agora era outro, e não poderia ser mais propício do que os tilintares do amanhecer que começou a se anunciar. Estavam no alto de uma alta torre, ignorando todas as proibições e algumas grades. Deitaram-se. Novamente os rostos ficaram próximos, e se olharam sem silêncio. Bastante tempo depois, ele disse:
            - O que define intimidade não é a capacidade de falar com alguém, mas de permanecer ao seu lado em silêncio.
            Ela sorriu. A figura dela era mais que perfeita para se encaixar naquele céu de baunilha de Monet. Quando ela lançava um olhar, parecia que o atravessava. Quando sorria, o desconcertava. Fazer filosofia barata sobre a vida daquele local impressionante ao amanhecer parecia tão trivial quanto surreal, e esqueceram um pouco do restante da vida.