terça-feira, 4 de outubro de 2011

Contos Cruspianos III

Naquela manhã ele não foi para casa. Quando já finalizava seu café, ouviu ao longe os auto-falantes do sindicato dos trabalhadores, dando notícia das pautas da greve que já durava sete dias. Era uma voz de senhora, um pouco rouca. Diria melhor: cansada. Cansada de tanto gritar ao longo da vida em microfones e assembléias, nas lutas sindicais. As vozes que falavam aos auto-falantes eram sempre conhecidas, pois formava-se ali os quadros que disputariam em movimentos sindicais e partidários. É a maldita estratégia de ação política por dentro do Estado.



Gabriel havia presenciado grandes acontecimentos políticos no curso de seus três anos de faculdade, mas participara ativamente das coisas apenas no primeiro ano. A corrupção, as tramoias e as disputas partidárias no interior dos movimentos sociais o haviam desanimado. Desde então acompanhara tudo que acontecia no campus, mas de longe, sem se envolver muito. Ouvindo a voz daquela senhora, pensou em quanto da vida pessoas sacrificam em prol de uma mudança radical de sociedade. Elas simplesmente não aceitam. Recusam-se a aceitar a subalternidade, a sofrer nas duras lidas diárias por pouco enquanto sustentam os ricos que consomem e esbanjam o planeta. Lutam para acordar a classe média de seu silêncio comprado barato por salários medianos e carros populares.



Foi então que ouviu o som de fita adesiva, e percebeu que alguém fazia colagem de cartazes políticos na porta do elevador. Dentro do CRUSP, desenrolava-se também a política e as disputas de poder. Apesar de suas tendências anarquistas – definição dada por outras pessoas – ele considerou naquela manhã que se envolvia pouco com o que acontecia a sua volta.



Quando saiu da cozinha para o corredor, viu quem colava o cartaz na verdade recolava. Uma moção de repúdio tirada em assembléia de moradores havia sido rasgada por uma das vizinhas. Era Roberto, o vizinho do andar de baixo, quem o restaurava, remontando o quebra-cabeça de papéis. A intenção política da remontagem estava justamente em não substituir o papel, mas em colocar o mesmo, para mostrar que apesar das oposições, ele continuaria a testemunhar o que continha em suas linhas, gostassem ou não. Ele olhava e pensava em quantas pessoas estariam se envolvendo naquelas agitações políticas por detrás daquele cartaz rasgado.



Olhando para o vizinho, pensava em como era uma pessoa peculiar, uma realidade, um outro mundo com uma história totalmente fora de sua projeção, de suas suposições. Vindo do interior, de uma vida pacata, Gabriel sabia que sua experiência de vida, que não era pouca, ainda não bastava para compreender a trajetória de Roberto e tantos outros que ele havia conhecido em três anos. As mais singulares pessoas, com as mais singulares histórias. Contudo, os cruspianos não contam suas histórias a todos, e muito do que se sabe vem do implícito. Vinham de todas as partes, tinham as mais variadas idades, eram dos mais variados tipos.



Roberto era uma das personalidades peculiares da moradia. Aparentava por volta de trinta anos, cursava ciências sociais a provavelmente seis ou sete anos, sem projeções para se formar. Era muito envolvido nas disputas políticas dos moradores estudantes; fumava muito, e já se ouviu dizer dele em devaneios que tinha suas fases, nas quais usava de tudo; ninguém sabia ao certo a alternância e freqüência das fases. Em seu rosto, viam-se as marcas de uma história de vida conturbada e difícil. A barba por fazer e o cabelo já meio grisalho não o faziam velho, apenas faziam aparentar ser muito batido para alguém da sua idade. Contudo, tinha uma personalidade jovem, ouvia rock no último volume, enchendo o corredor com o som que ia de Nirvana à Raul Seixas.



Acima de tudo, sua principal característica era uma certa energia na sua presença, do tipo que Gabriel sentia quando estava diante de alguém cuja realidade lhe era totalmente distinta. Não raras foram as vezes em que as histórias das pessoas com tal energia o chocavam absurdamente. Porém, como já dito, nem todos compartilhavam o passado, e imaginar o que outros viveram com base em fragmentos do presente para ele era ao mesmo tempo fascinante e aterrador. Fascinante pelo contato mágico com o desconhecido; aterrador porque muitas vezes conhecia faces do mundo muito assustadoras, com as quais pessoas conviviam banalmente.



Ele cumprimentou Roberto, oferecendo-lhe café, como fazia a todos os vizinhos. Aceitou. Depois de um diálogo trivial, enquanto caminhavam até a casa de Roberto, quando este lança a pergunta:



Você sabe alguma coisa de carpintaria?



Pouco. Por quê?



Preciso fazer uma adaptação em casa.



Gabriel aceitou seu convite, e foi até a casa de Roberto. Lá, pode novamente juntar fragmentos do passado obscuro e sentir o contato com o desconhecido e encoberto.

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