quarta-feira, 1 de junho de 2011

Contos Cruspianos II

Gabriel


Lá estava ele a fazer café. Como todos os dias, ia até a cozinha pela manhã e passava seu café já adoçado, com os mesmos apetrechos contendo as mesmas medidas dos mesmos ingredientes: pó de café, marca Pilão a vácuo; açúcar, da marca mais barata; meia caneca de leite, para ser preenchida depois com café; um baseado cuidadosamente bolado ao som do piano de Arnaldo Baptista.
Enquanto ele bebia seu café e fumava seu cigarro, viajava por assuntos dispersos com o pensamento. Gostava de liberar a mente de qualquer preocupação, deixa-lá fluir naturalmente por onde bem quiser ir. Sentia que esse era seu primeiro hábito diário mais ritualístico, do qual gostava muito e desagradava-lhe quando não podia realizá-lo. Dizia a pessoas próximas que, no curso dos seus vinte e quatro anos, nunca tinha percebido algum indício de que envelhecera, até reparar nesse costume matinal que tanto lhe trazia autoconhecimento.
As cozinhas eram coletivas e ficavam no fim do corredor. Lá a vista era bela, apesar de mascarar o caos da urbanidade acelerada. Ele costumava mais olhar a outra janela, que dava para as árvores. Pinheiros se misturavam por entre um grande gramado sortido de outras árvores de copa, alguns pés de amora, e o esboço do que seria uma horta coletiva para os estudantes.
Quanto terminava, ia para casa. Era muito acusado pelos amigos de só ouvir Mutantes, o que de fato ouvia muito. Mas muitas manhãs foram cativadas com o som de Arnaldo Baptista, Rogério Duprat, Caetano Veloso, Raul Seixas, Beatles, entre outros representantes das décadas de 60 e 70, os anos nos quais ele acreditava estar seu coração, brincando algumas vezes de que nasceu na época errada. Muitas vezes tocava violão e compunha músicas que só ele ouviria, por puro prazer de criar. Muitas se perderiam para sempre nas areias do tempo. O que gostava mesmo, era de abrir as janela e sentir o sol entrar no quarto, quando então pegava o livro de Gabriel Garcia Marques e perdia-se por entre as páginas, absorvido.
Gabriel era uma pessoa singular. Era jovem, mas entrou com idade um pouco acima da média na faculdade. Cursava geografia e era adepto da teoria da deriva, dos situacionistas. Sua paixão por escrever o guiaria por mil memórias e relatos de suas andanças sem rumo pelo Brasil afora, “derivando” aqui e ali. Tinha amigos e conhecidos em toda parte, sabia de tudo um pouco e no fundo sentia que não sabia era nada.
Gabriel era ao mesmo tempo um sonhador sem causa e um cético niilista. Gostava de definir-se como metamorfose ambulante, de passar por mil religiões, filosofias, políticas e lutas. No fundo, estava mergulhado numa eterna busca por algo que não sabia bem o que era.

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