quinta-feira, 2 de junho de 2011

Pomerode II



Eu estava à deriva. Andava a esmo pela praça pensando onde a deriva me levaria. Acabei em frente a uma casa que me chamou muito atenção. Vi muitas esculturas em madeira, belíssimas, dispostas ao longo de um jeitoso e colorido jardim. Não parecia uma casa gigantesca, mas era como produto de artesanato, com seus traços perfeitos. Bati palmas, ninguém. Chamei, ninguém novamente. Entrei vagaroso pelo jardim e cheguei até a porta, estava aberta.
Veio ao meu encontro um senhor, magro, alto, traços muito mais brasileiros do que europeus, aparentava seus 70 anos. Conversamos um pouco, contei-lhe que estava à deriva e que me impressionei com as estátuas do jardim. Ele sorriu, e convidou-me para entrar.
Entramos em uma pequena oficina de trabalho em madeira. Havia centenas de pequenas estatuetas rústicas amontoando-se sobre prateleiras, adornando as paredes. Vi algumas peças esculpidas pela metade, outros pequenos modelos, muitas ferramentas espalhadas, e um cheiro forte de madeira. Eu estava na casa do senhor João.
O senhor João não tinha nome alemão porque na época em que nasceu nomes alemães eram proibidos no Brasil. Seu pai, Erwin Curt Teichmann, foi um grande escultor da região, vindo da Alemanha em 1913. João contou-me com orgulho das exposições do pai no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, das estátuas do pai espalhadas pela cidade, da história de sua família. No momento, ele morava sozinho na casa do pai; os irmãos casaram-se e os pais já morreram, ele acabou por herdar a casa e o acervo.
“Está vendo a aquela pequena estátua ali, na prateleira? É o modelo da estátua central da praça da cidade. Meu pai fazia pequenos modelos em madeira antes de esculpir em metal ou rocha. Sim, ele também trabalhava metais. Vê aquela outra pequena estátua, a do Cristo? É o modelo de uma grande estátua de bronze do cemitério da cidade, belíssima.”
Atravessamos a oficina e entramos em um grande saguão. Parecia tão espaçoso que pensei por um momento em não estar na pequena casa de artesanato, mas num palacete colonial alemão. Cristaleiras com porcelanas trabalhadas, tapeçarias na parede, móveis coloniais e muitas esculturas de madeira davam um brilho especial à sala. João me contava de algumas peças, muitas delas retratavam pessoas falecidas de sua família, ou figuras importantes da época do senhor Erwin. A sinestesia da sala me bombardeava de sensações. A que mais me chamou atenção foi um painel de madeira escura, em alto-relevo, que ocupava uma parede inteira, retratando a santa ceia. O verniz sobre as figura humanas fazia com que brilhassem sobre o fundo negro.
Eu ouvia a voz de João ao fundo, enquanto olhava para a obra, absorvido. Foi quando vi a sombra do braço dele se levantar, segurando uma escultura de um rosto, e me golpeou na nuca. Caí atordoado. Senti uma forte adrenalina correr meu corpo, estupefato. Enquanto ele se preparava para um segundo golpe, fechei os olhos e respirei fundo. Quando os abri, a cena tinha voltado ao normal, com João ainda falando ao fundo, eu ainda estava a contemplar o painel. Tivera mais uma pequena alucinação, provavelmente fruto do ácido que tomei meia hora antes de desembarcar na cidade. O problema era que as alucinações estavam ficando mais freqüentes com o passar do tempo. Senti-me angustiado, parece que a naquele momento passei a captar uma sensação estranha vinda de tantos rostos de pessoas falecidas impressos na madeira, me observando. A energia da sala ficou pesada. Disse ao senhor João que precisava ir, visivelmente angustiado.
Quando encerrei a visita, João me disse: “vá ao cemitério e conheça a estátua de bronze, você vai gostar”. Saí de lá já em busca do cemitério da cidade. Ao contrário de João, os moradores eram de fato pouco receptivos e não davam informações facilmente, então andei sem rumo, tentando dar seguimento a minha deriva.

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