Ainda a deriva. De longe, vi as torres de uma igreja ortodoxa e conjeturei se já não estava próximo o cemitério. Foi então que outro jardim florido me chamou atenção por suas cores, era uma floricultura.
Saindo pela porta, vi uma senhora de cabelos curtos e loiros, com seus 70 anos de idade. Tinha traços mais europeus, ao contrário de João. Mas como ele, falou comigo de bom grado quando elogiei seu jardim. Era a dona Ana.
Perguntei-lhe se sabia de algum cemitério por perto. Ela sorriu e me levou então a um terreno nos fundos de sua casa, na posição que seria a frente antiga da igreja ortodoxa, local do antigo cemitério da cidade. Hoje a fachada foi mudada e esse cemitério desativado. Agora ele é um terreno baldio, com muito mato, com algumas lápides antigas, de pedra, que davam ao lugar um ar macabro. As tumbas mais recentes eram de 1927. Não faço idéia de porque aquilo ainda está ali, esquecido nos fundos de uma floricultura.
Depois de conhecer o lugar, perguntei-lhe da estátua de bronze de Erwin Curt, que eu sabia ficar no cemitério atual. Ela se dispôs a me guiar até lá.
“Conheço muito a história desse cemitério, morei aqui a vida inteira e sempre o freqüentei”. “Por causa dos suicídios?”, perguntei. Ela contou-me da veracidade dos boatos que eu ouvira: foi mesmo proibida a venda de cordas, os suicídios às vezes eram três ou quatro numa mesma família, e ninguém sabia a causa. Todos enforcados.
Tornara-se força de expressão quando, numa briga, alguém dizia: “vou sair e me enforcar”, e respondiam: “vá que te darei a corda”. Certa vez, em lua de mel, um casal brigou e o marido pediu corda a esposa. Ela deu, subestimando o marido. Na primeira manhã de casados, ela achou o corpo dele pendurado na sala.
Chegamos ao cemitério. Ficava em um terreno inclinado, de face voltada para leste, para que os mortos ficassem de frente para o nascer do sol. Era muito florido e colorido, com muitas esculturas e túmulos em pedra impressionantes. Ao entrarmos, ela me levou até um túmulo e contou-me sua história.
Era um rapaz comum, vinte poucos anos, trabalhava, era por volta da década de 1950. Um belo dia, sem mais nem menos, ele invadiu armado a residência de um casal recém-casado, no momento em que a jovem mãe amamentava o primeiro filho. Atirou na criança, o tirou atravessou-a e matou a mãe. Em seguida atirou no pai. O casal morreu ali. Em seguida ele se enforcou na sala. O crime chocou a pequena cidade. Como punição, o assassino foi enterrado de cabeça para baixo, e não pode ver o nascer do sol como os outros túmulos. Ela me mostrou outro túmulo mais a frente. Um casal, mesmo ano de morte. Era o casal da história.
“E a criança?”, perguntei-lhe.
“Trabalha ali naquele galpão, passa bem. Hoje já é um homem formado”.
Ela continuou a me contar dos túmulos. Falou-me de um caso em que um sujeito sumiu da cidade, sem avisar amigos ou família. Tempos depois, descobriu-se que fora enterrado como indigente em Blumenau. A família, ao descobrir, mandou exumar o corpo para ser enterrado em Pomerode. Quando ele chegou, a família viu que a corda usada no suicídio ainda estava ao redor do pescoço do jovem. Cortaram-na e o enterraram junto ao túmulo da família. Acreditava-se entre os familiares que o rapaz não conseguira descansar na morte enquanto a corda não fosse retirada.
Depois, Ana mostrou-me a estátua de bronze de Erwin, magnífica.
Aos poucos, enquanto ela falava e caminhava comigo pelas lápides, percebi que a atenção que me dava refletia sua profunda solidão. Enquanto ela falava, a energia do lugar parecia envolvê-la, seus olhos eram leves, suaves, distantes. Ao mesmo tempo, traziam as marcas não apagadas da dor, da qual ela se alimentava. Seus cabelos curtos e loiros caiam pelo rosto de leve, a pele já desgastada pelo curso de seus setenta anos, sendo o último ano de fato o mais difícil.
Foi então que paramos. Ela começou a acariciar uma lápide. Chorava. Contou-me sua história: perdera uma filha no ano passado, vítima da gripe suína. “Era enfermeira e morreu por ajudar os outros”, dizia. Falou também em negligência do hospital, parecia procurar sempre os responsáveis. Por fim, me contou dos meses de agonia que passou em São Paulo acompanhando o tratamento da filha. Ela acabou não resistindo, por conta de uma deficiência imunológica leve, tinha desde pequena.
Eu observava a cena percorrido por uma estranha energia. O cemitério em que estávamos era belíssimo, mas envolvido pela bruma de tristeza que pairava sobre a cidade, pela dor que emanava dela. A luz do por do sol já se anunciava; ela parecia precisar transmitir suas lágrimas, trazia em si uma angústia machadiana que me absorvia. Foi sem dúvida uma experiência intensa.
Quando retornei da deriva, cansado e com a mente fervilhando, me convenci de que tudo não passara de uma alucinação. Na manhã seguinte percebi que estava errado.
Saindo pela porta, vi uma senhora de cabelos curtos e loiros, com seus 70 anos de idade. Tinha traços mais europeus, ao contrário de João. Mas como ele, falou comigo de bom grado quando elogiei seu jardim. Era a dona Ana.
Perguntei-lhe se sabia de algum cemitério por perto. Ela sorriu e me levou então a um terreno nos fundos de sua casa, na posição que seria a frente antiga da igreja ortodoxa, local do antigo cemitério da cidade. Hoje a fachada foi mudada e esse cemitério desativado. Agora ele é um terreno baldio, com muito mato, com algumas lápides antigas, de pedra, que davam ao lugar um ar macabro. As tumbas mais recentes eram de 1927. Não faço idéia de porque aquilo ainda está ali, esquecido nos fundos de uma floricultura.
Depois de conhecer o lugar, perguntei-lhe da estátua de bronze de Erwin Curt, que eu sabia ficar no cemitério atual. Ela se dispôs a me guiar até lá.
“Conheço muito a história desse cemitério, morei aqui a vida inteira e sempre o freqüentei”. “Por causa dos suicídios?”, perguntei. Ela contou-me da veracidade dos boatos que eu ouvira: foi mesmo proibida a venda de cordas, os suicídios às vezes eram três ou quatro numa mesma família, e ninguém sabia a causa. Todos enforcados.
Tornara-se força de expressão quando, numa briga, alguém dizia: “vou sair e me enforcar”, e respondiam: “vá que te darei a corda”. Certa vez, em lua de mel, um casal brigou e o marido pediu corda a esposa. Ela deu, subestimando o marido. Na primeira manhã de casados, ela achou o corpo dele pendurado na sala.
Chegamos ao cemitério. Ficava em um terreno inclinado, de face voltada para leste, para que os mortos ficassem de frente para o nascer do sol. Era muito florido e colorido, com muitas esculturas e túmulos em pedra impressionantes. Ao entrarmos, ela me levou até um túmulo e contou-me sua história.
Era um rapaz comum, vinte poucos anos, trabalhava, era por volta da década de 1950. Um belo dia, sem mais nem menos, ele invadiu armado a residência de um casal recém-casado, no momento em que a jovem mãe amamentava o primeiro filho. Atirou na criança, o tirou atravessou-a e matou a mãe. Em seguida atirou no pai. O casal morreu ali. Em seguida ele se enforcou na sala. O crime chocou a pequena cidade. Como punição, o assassino foi enterrado de cabeça para baixo, e não pode ver o nascer do sol como os outros túmulos. Ela me mostrou outro túmulo mais a frente. Um casal, mesmo ano de morte. Era o casal da história.
“E a criança?”, perguntei-lhe.
“Trabalha ali naquele galpão, passa bem. Hoje já é um homem formado”.
Ela continuou a me contar dos túmulos. Falou-me de um caso em que um sujeito sumiu da cidade, sem avisar amigos ou família. Tempos depois, descobriu-se que fora enterrado como indigente em Blumenau. A família, ao descobrir, mandou exumar o corpo para ser enterrado em Pomerode. Quando ele chegou, a família viu que a corda usada no suicídio ainda estava ao redor do pescoço do jovem. Cortaram-na e o enterraram junto ao túmulo da família. Acreditava-se entre os familiares que o rapaz não conseguira descansar na morte enquanto a corda não fosse retirada.
Depois, Ana mostrou-me a estátua de bronze de Erwin, magnífica.
Aos poucos, enquanto ela falava e caminhava comigo pelas lápides, percebi que a atenção que me dava refletia sua profunda solidão. Enquanto ela falava, a energia do lugar parecia envolvê-la, seus olhos eram leves, suaves, distantes. Ao mesmo tempo, traziam as marcas não apagadas da dor, da qual ela se alimentava. Seus cabelos curtos e loiros caiam pelo rosto de leve, a pele já desgastada pelo curso de seus setenta anos, sendo o último ano de fato o mais difícil.
Foi então que paramos. Ela começou a acariciar uma lápide. Chorava. Contou-me sua história: perdera uma filha no ano passado, vítima da gripe suína. “Era enfermeira e morreu por ajudar os outros”, dizia. Falou também em negligência do hospital, parecia procurar sempre os responsáveis. Por fim, me contou dos meses de agonia que passou em São Paulo acompanhando o tratamento da filha. Ela acabou não resistindo, por conta de uma deficiência imunológica leve, tinha desde pequena.
Eu observava a cena percorrido por uma estranha energia. O cemitério em que estávamos era belíssimo, mas envolvido pela bruma de tristeza que pairava sobre a cidade, pela dor que emanava dela. A luz do por do sol já se anunciava; ela parecia precisar transmitir suas lágrimas, trazia em si uma angústia machadiana que me absorvia. Foi sem dúvida uma experiência intensa.
Quando retornei da deriva, cansado e com a mente fervilhando, me convenci de que tudo não passara de uma alucinação. Na manhã seguinte percebi que estava errado.
PS: O cemitério da foto é o primeiro que aparece no texto, o abandonado.
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