terça-feira, 16 de setembro de 2014

Gabriel - dor de estômago

Já era tarde. Gabriel estava sentado, arqueado sobre si mesmo. Os olhos vermelhos lhe pesavam, respirava fundo, mas pouco podia. Tinha a mão sobre o estômago, e com a outra se apoiava na mesa empoeirada. As dores estavam aumentando e ficava cada vez mais difícil ignorar. Foi até a cozinha e pegou uma banana, estava passada, mas ele comeu depressa. Ainda a mão sobre o estômago. Voltou ao quarto e sentou-se. Já não soava alto o som intempestivo da fase clássica dos Mutantes, que enchia a casa tanto quanto os fortes raios de sol que aqueciam a cama debaixo da janela. Estava no silêncio, em uma noite sem lua, num quarto sem ninguém.

           Estendeu a mão sobre a gaveta, procurando algo. Ainda arqueado, colocou sobre seu colo um bloquinho de papel de lembretes. Testou três canetas para achar uma que ainda escrevesse, as tintas estavam secas. Então escreveu: “Acorde mais cedo. Faça um sanduíche gostoso e NÃO beba café o dia todo! Abraços... ”, e colou em frente a tela do computador. Então riu. A frase de fato tinha ficado ambígua. 
Depois, pôs-se a escrever.

Solidão

Fechado no meu quarto fico sozinho.

Hoje passei o dia todo aqui. Abri as janelas, entrei em contato com o dia e com o vento. Ouvi música alta, curti meu ócio, e não entrei em contato prolongado com muitas pessoas, reservando mais tempo para ficar comigo.
Acredito que o motivo principal de algum dos meus momentos de solidão é justamente que às vezes eu mesmo me abandono. Deixo-me sozinho para me perder no meio dos outros, e atesto que é bem possível estar só em meio à multidão.

...
Hoje foi diferente. Fiquei de fato sem alguém por perto, mas ao mesmo tempo me senti mais comigo, pude me perceber melhor. É justamente na decomposição de algo que os elementos irredutíveis se mostram, elementos que em conjunto não eram tão bem identificados.
Em certos momentos do dia concluí que as pessoas de alma pobre são justamente aquelas que não se permitem conhecer-se. Concluí também que a solidão pode ser um mal se usada erroneamente, assim como tantas coisas na vida. Descobri que a mente se liberta do corpo melhor quando não está presa a presença de outros, mas que ela vai por caminhos próprios, não se leva a mente aonde se quer.

domingo, 7 de setembro de 2014

Pequeno quarto - ao som de Arnaldo Baptista

Era uma manhã fria de agosto, na solidão e aconchego do pequeno quarto, as paredes, o tempo e o espaço, se transmutam em uma mistura de distorção, cores, sentidos novos. É confuso, mas não entender faz parte das novas sensações.
Sentia-se como um desprendimento. A realidade, às vezes, age como um grilhão. É o peso. É irônico: sair desse jugo é tão leve e ao mesmo tempo tão intenso, tanto quanto o peso jamais será.
Essa leveza parecia estática, mas também movimento. Ou algo entre as duas coisas. É difícil perceber. O movimento às vezes é de tudo ao redor enquanto se está parado. Talvez um terceiro estado da relação de posição entre corpos para o qual não exista ainda uma palavra.
O som parecia luz, a luz parecia som. O ar estava mágico, os contornos de tudo ligeiramente borrados e luminosos. Não fazia a menor diferença olhos abertos ou fechados. Nada fazia diferença, tampouco semelhança de algo.

...

Um turbilhão.

Uma respiração te traria à realidade. Espere. Mais um pouco...

Cuidado. O labirinto de Minus pode as vezes ser traiçoeiro e nos confundir. Não perca a corda amarrada na saída. Ou a trilha de pão.

Mais um. Erga os braços e aproveite a descida. Sem medo, aproveite porque é emocionante, é como a primeira descida da montanha russa, mas para todas as direções.


Respiração funda. Saliva descendo a garganta. O tato de novo reaparece. Agora já reconhecível a posição do corpo, as paredes, o teto... Uma era inteira se passou. Mas agora os sentido percebem que não passou mais de um minuto ou dois, pois foi apenas o tempo exato de um solo de órgão de Arnaldo Baptista.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Shine on you crazy diamond

De repente percebeu que lhe restavam apenas lembranças de uma outra época.
Pensou em músicas, em pessoas, em milhares de memórias criadas por ele mesmo.
Viu-se em outras ruas. Sentiu texturas. Sorriu das travessuras.

As conversas. Longas, intermináveis, sobre tudo, qualquer coisa que nos deixe aqui, falando e se olhando, como se o mundo parasse.

A intensidade. Aquele explodir do peito, “como um tremor de terra”. Os gritos...
Uma garrafa vazia, cinzas no lençol, uma vitrola tocando Pink Floyd.
Tantos lugares, tanta coisa, tanto tudo.

De repente se percebeu ali sentado. Não pareciam ser a mesma pessoa, mas eram.

Torre

Eles estavam sós. Fazia frio e um nevoeiro já se ameaçava, mas a vista espetacular do lugar fazia ver a cidade inteira, e esqueciam por vezes do tremor da pele, sem saberem se tremia pela temperatura ou pela ligeira lascívia daquele momento, que era fugaz e ao mesmo tempo longo, como a madrugada que adentravam.
            A noite de fato havia sido longa. Durante a festa, a banda tocou a todo vapor uma combinação de Mutantes com Tim Maia Racional, tornando a trilha sonora algo inacreditável. Eles, porém, ouviram à relativa distância, pois fugiram da multidão para observar estrelas, e haviam se perdido em uma sacada fria de onde apreciaram a vista, onde aproximaram o rosto, murmurando mentiras sinceras.
            O som de fundo agora era outro, e não poderia ser mais propício do que os tilintares do amanhecer que começou a se anunciar. Estavam no alto de uma alta torre, ignorando todas as proibições e algumas grades. Deitaram-se. Novamente os rostos ficaram próximos, e se olharam sem silêncio. Bastante tempo depois, ele disse:
            - O que define intimidade não é a capacidade de falar com alguém, mas de permanecer ao seu lado em silêncio.
            Ela sorriu. A figura dela era mais que perfeita para se encaixar naquele céu de baunilha de Monet. Quando ela lançava um olhar, parecia que o atravessava. Quando sorria, o desconcertava. Fazer filosofia barata sobre a vida daquele local impressionante ao amanhecer parecia tão trivial quanto surreal, e esqueceram um pouco do restante da vida.