quinta-feira, 19 de maio de 2011

Crônica do Cronista




Ele estava parado, diante do computador. Olhava para a tela e pensava em escrever uma crônica.


A crônica que estava em sua cabeça era a seguinte: ele teria uma vizinha, que conheceria todos os seus gostos musicais devido ao hábito dele de escutar música alta. Ele a encontraria no elevador, levando lixo reciclável. Então, ela comenta sobre o evento de agosto dos fãs de Raul em São Paulo e pergunta se ele vai. Ele questiona o porquê da pergunta e os dois entrariam num debate musical acerca de Raul Seixas com base nas informações trocadas via paredes de vizinho. O texto seria de frases curtas e rápidas a là Fernando Veríssimo, temperado com piadas internas para os bem fãs de Raul, causando aquela sensação de identidade com o texto. A crônica seria mesmo um sucesso.


Então ele saiu até a escada de incêndio, ao ar livre, e pensava em sua crônica, no que escreveria. Deixou-se levar pela paisagem e pela brisa suave daquela noite; estava fria, porém extremamente convidativa, por ironia. Com seus sentidos aguçados e suas percepções ampliadas, em boa parte devido a visão magnífica da São Paulo noturna vista daquela altura, viu-se imerso no ambiente com todos os modos possíveis de percebê-lo. De pensar em crônicas, pensou na pessoa do cronista. Tantas visões são possíveis, como uma cronista pode retratar uma só realidade se existem tantas? E se o cronista tiver mais de uma visão da realidade, ou não ter, mas ter consciência de que sua realidade é apenas um pequeno ponto de vista, ditado por seus enganosos sentidos limitados? Em poucos segundos, esqueceu-se totalmente da idéia original da crônica e passou a olhar, da escada de incêndio, a cidade iluminada. De quantas formas é possível pintá-la em um quadro? E em um poema ou uma crônica? Enxergamos todos a mesma coisa? Como se confirmar isso...? Será que existe alguma pessoa que é capaz de perceber mais de um tipo de realidade ao mesmo tempo? Acho que isso geraria um terceira, não? Aliás, não acredito que esse tipo de coisa siga nosso sistema de catalogação por unidades indivisas, usado para contar bois ou figurinhas. Talvez exista um número certo de realidades, mas talvez seja um número que não pode ser expressado ou abstraído pela mente humana, pois somos incapazes de percebê-lo e torná-lo uma idéia. Ou talvez não existam os números. Número existe?


O pensamento seguinte foi o mais óbvio: por que de pensar em crônica, pensou em cronista e de cronista, nas suas possíveis visões, e de suas visões às dimensões da existência? Como podem ser tortuosos os caminhos que o cérebro traça as vezes... Aliás, tudo, no fim, é apenas uma trilha de nosso cérebro, um impulso elétrico. Sim, nosso acesso à realidade se dá por meio de sentidos, que mandam sinais elétricos para o cérebro e esses sinais percorrem caminhos do sistema nervoso. Porém, e se em vez de ele utilizar os caminhos habituais, ele usar outras vias para se chegar ao mesmo destino, seriam os objetos percebidos da mesma maneira?


No fim, não teve dúvidas. Entrou, sentou-se, e escreveu. Fez uma crônica sobre o cronista: esta crônica.

Um comentário:

  1. O cérebro muda de sentido ao ser estimulado por... estimulantes, claro.
    Gostei da crônica metacrônica, mas fiquei curiosa com a ideia original.
    Fica para a próxima?

    beijos!!!

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