segunda-feira, 23 de maio de 2011

Shakespeare e o malabarista

Ele estava sentado, e já fazia tempo demais para a pequena paciência com que havia acordado. Burocracia. Como odiava escritórios. O ambiente mais opressor possível, símbolo do desperdício das potencialidades humanas. Olhava a atendente por detrás da mesa, ela com seus olhos fixos no papel, enquanto o ruído do lápis se desfazendo parecia ensurdecê-lo. Os ponteiros do relógio pareciam dele zombar, passando mais devagar do que o de costume.
Deixou sua mente divagar por um pequeno instante, olhando o sol lá fora, notando a cor mais forte que a grama exibia naquela manhã. Reparou, no canto direito da janela, um elemento a mais na visão distante: um malabarista treinava manobras com uma bola de vidro brilhante, que refletia os raios de sol e parecia feita de luz. O diretor dos movimentos da bola parecia a ela ligado, enquanto suas mãos deslizavam pelo ar parecendo mal tocar a bola de luz que quase flutuava. Os cabelos desgrenhados e soltos, a barba ligeiramente grande, as roupas coloridas, as pulseiras e o colar cabalístico davam à cena um ar peculiar demais para se descrever apenas com palavras.
Novamente, ele olha por cima da mesa. Parece que está mais longa, ele portanto está mais distante da atendente, que agora olha para tela de um computador. Parece mais querer ignorá-lo do que executar alguma função enquanto lê a tela. Ele fecha os olhos, inclina de leve a cabeça e coça o olho, a cena típica de cansaço mental. Sente-se desperdiçando-se naquela cadeira; desperdiçando a si mesmo.
Ele então escuta palavras sussurradas, ditas em um ritmo suave. Olhando para a mesa ao lado, ele vê outra atendente, uma jovem japonesa, não mais de dezoito anos. Seus cabelos lisos caíam de leve nos olhos. Seu sorriso era tímido, mas parecia conter mais do que apenas esse aspecto de sua personalidade. Debruçado, com os cotovelos em sua mesa, estava o autor das palavras sussurradas: um garoto jovem como ela, de pele tão clara que parecia ser sensível ao sol, contrastando forte com seus cabelos e olhos totalmente escuros. Seus traços do rosto eram desenhados em linhas suaves, com um óculos discreto também de linhas finas e suaves. Parecia deliciar-se enquanto segurava um livro aberto diante de si: poemas de Shakespeare. Lia para ela em inglês, depois, sem ler, o recitava traduzido. Olhava-a nos olhos, e recitava bem baixo, para não romper o silêncio ensurdecedor daquele escritório; este direito era reservado apenas aos telefones que tocavam a cada cinco minutos.
Ele tenta escutar alguma frase do poema, mas a cena o encanta, e ele não consegue distinguir bem as palavras. Impossível não pensar em como frases de Shakespeare soltas no ar voavam pelo escritório, em como o malabarista lá fora manipulava a bola de vidro cheia de energia, e em como a atendente sequer pisca diante da tela, ignorando completamente a vida ao seu redor.
A atendente a sua frente retira uma papel, carimba-o com mais força do que o necessário, assina um visto rápido e lhe entrega. Ao sair da sala, pensa se Shakespeare já escreveu algum poema sobre um malabarista. Ou sobre um casal no local de trabalho, que trocam olhares fugidios e poemas sussurrados com sorrisos. Não. Talvez Shakespeare tenha escrito apenas uma crônica a respeito.

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